A TEOLOGIA DA ENCARNAÇÃO, NO LIVRO V, DA OBRA CONTRA AS HERESIAS, DE IRINEU DE LEÃO
Felipe Afonso de Sousa Araújo[1]
1 A ENCARNAÇÃO DO VERBO
Segundo Santo Irineu, toda a criação de Deus possui na encarnação do Verbo seu ponto mais alto, pelo qual o homem é elevado a sua plenitude, ao ponto também que o próprio homem se compreende como esse “ser-para-salvação”, ou seja, pela encarnação, Cristo revela ao homem a sua essência divina e concede-o a “herança entre todos os santificados” (At 20, 32), pois o homem é um ser criado para Deus.
Deste modo, é pela encarnação do Verbo que o mistério de Deus se revela a sua criação, pois de outro modo não seria possível, como afirma o bispo de Leão: “não teríamos absolutamente podido aprender os mistérios de Deus se o nosso Mestre, permanecendo Verbo, não se tivesse feito homem. Com efeito, nenhum outro nos podia revelar os segredos do Pai a não ser o seu próprio Verbo” (IRINEU DE LEÃO, 1995, p. 518). Sendo, pois, o homem um “ser-para-salvação”, deve-se compreender que esta salvação herdada por Deus vai mais além que a remissão dos pecados, mas diz respeito a economia de Deus, que se realiza por meio da recapitulação de todas as coisas em Cristo.
Por meio da recapitulação, Cristo uni a toda a humanidade a partir do mistério da encarnação, recordando a desobediência do antigo Adão e a salvação por meio do novo Adão, Cristo Jesus, visto que “o primeiro homem, Adão, foi feito alma vivente; o ultimo Adão tornou-se espírito que dá vida” (1 Cr 15, 45). Nesse sentido, esse novo Adão que dá vida revela-se como essa “imagem do Deus invisível” (Cl 1, 15), pelo qual o homem encontra caminho para chegar até Deus. A encarnação, deste modo, uni o céu e a terra, o humano e o divino, por meio de um elo inquebrantável, firmado pelo próprio amor de Deus que quer revelar-se para sua criação, não por necessidade, mas por bondade. Segundo Hamman (1995, p.40) “pela encarnação, Cristo faz descer Deus ao homem pelo Espírito e faz o homem subir até Deus, realizando nele a obra modelada por si mesmo”.
O centro de toda a teologia do bispo Irineu está contido na sua doutrina da recapitulação, que encontra na teologia paulina fundamento para os seus ensinamentos, sob o qual se desenvolve a ideia de Cristo regenerador da humanidade, que reuni a todos, sob a autoridade divina, para recondução a Deus, o mundo criado que o pecado corrompeu. Deste modo, o bispo de Leão compreende por recapitulação “a retomada de toda a história da salvação desde Adão por parte de Cristo” (BETTENCOURT, 2003, p. 40), pelo qual Jesus fez-se o novo Adão para oferecer ao Pai o tributo de amor que o primeiro Adão lhe negara, ou seja, Cristo vai até a morte por amor ao Pai, porque o primeiro Adão foi até a morte por desamor ao Pai. Deste modo, Jesus Cristo é o recriador do homem, sendo também o Pai de uma nova humanidade que reconduz o seu povo a salvação com Ele para Ele, como afirma São Paulo: “tudo foi criado por ele e para ele” (Cl 1, 16). Segundo Irineu:
O que se perdera tinha carne e sangue, porque foi usando o limo da terra com que Deus plasmou o homem e era justamente por este homem que se devia realizar a economia da vinda do Senhor. Neste sentido, o Apóstolo escreve aos colossenses: “E vós também éreis uma vez afastados e éreis inimigos do seu pensamento pelas obras más, porém agora sois reconciliados no seu corpo de carne por meio de sua morte para vos apresentar diante dele santos, sem mancha e inocentes”. Vós sois reconciliados, ele diz, no seu corpo de carne, porque a carne justa reconciliou a carne que era presa do pecado e a introduziu na amizade de Deus. (IRINEU DE LIÃO, 1995, p. 322).
Nesse sentido, com a encarnação do Verbo de Deus, Cristo recapitula em si mesmo toda a humanidade, nos proporcionando a salvação na sua carne e recuperando-nos o que se havia pedido desde Adão, o fato de sermos imagem e semelhança de Deus. Deste modo, a encarnação destrói os efeitos negativos que se estendera em toda a humanidade pela desobediência do primeiro Adão, a fim de “aniquilar a morte e vivificar o homem” (BETTENCOURT, 2003, p. 40). Destarte, a recapitulação torna-se fundamento da soteriologia de Irineu de Leão, pois revela o processo da economia de Deus como caminho da salvação, que vai além da remissão dos pecados e da restituição da graça divina perdida pela desobediência a Deus.
A história da salvação — muito maior do que a da remissão dos pecados — é o processo da economia de Deus, realizada pela recapitulação de todas as coisas em Cristo; é ela espaço da educação progressiva do homem. Dado que este não foi criado nem perfeito, nem imperfeito — mas perfectível — deve ir-se habituando progressivamente à vida do Espírito, que vive nele até sua humanização completa — quando então estará assemelhado a Deus. (RIBEIRO, 1995, p. 20)[3].
Irineu compreende, deste modo, que a humanidade fora criada para que viva e veja a manifestação da glória de Deus, pois “a glória de Deus é o homem vivo e a vida do homem é a visão de Deus” (RIBEIRO, 1995, p. 19). Nesse sentido, o bispo de Leão compreende que a humanidade participa da restauração e da ressureição em Cristo, assim como afirma São Paulo: “o Deus da paz voz conceda santidade perfeita; e que o vosso ser inteiro, o espírito, a alam e o corpo sejam guardados de modo irrepreensível para o dia da Vinda de nosso Senhor Jesus Cristo” (1Ts 5, 23). A salvação, deste modo, “devolve ao ser humano sua bondade e perfeição originárias, já que estas não foram totalmente perdidas pelo pecado de Adão e Eva” (FELLER; JÚNIOR, 2016, p. 130).
[1] Licenciado em Filosofia e Bacharelando em Teologia pelo Instituto Católico de Estudos Superiores do Piauí – ICESPI.
[2] Diz respeito a reflexão e estudo sobre a salvação humana.
[3] RIBEIRO, Hélcion. In: IRINEU DE LIÃO. Contra as Heresias. Tradução: Lourenço Costa. São Paulo: Paulinas, 1995
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